21
mar
2014

“Quando tinha 6 anos, queria ser cozinheiro e, aos 7, Napoleão. Desde então, minha ambição foi aumentando sem parar.” Com a frase que abre sua autobiografia — “La vida secreta”, escrita e lançada em 1942, quando, diga-se, tinha menos de 40 anos —, Salvador Dalí (1904-1989) já deixa entrever o que seria sua inegável marca: o desejo de tornar-se o mais conhecido excêntrico de seu tempo.

Um vaidoso Dalí, assim, construiria seu próprio museu mais tarde, aberto em 1974, para ser “o maior objeto surrealista do mundo”. O Teatro Museu Dalí, em Figueras, cidade natal do artista, recebe hoje um milhão de visitantes por ano e figura no ranking dos mais visitados da Espanha. É de lá que vem ao Brasil boa parte das obras que compõem a não menos ambiciosa exposição “Dalí”.

Principal mostra do ano da Copa no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio, será aberta em 29 de maio e, em outubro, seguirá para o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, que há cinco anos negocia sua vinda ao país. Com custo de R$ 9 milhões (captados via Lei Rouanet), a exposição terá 30 pinturas a óleo, mais de uma centena de trabalhos gráficos e uma instalação — reunidas, as obras têm valor estimado em US$ 170 milhões, o equivalente a quase R$ 400 milhões. Dos R$ 9 milhões do orçamento da mostra brasileira, um terço custeia apenas os direitos autorais das peças.

— Estamos salivando para saber os números de visitantes que teremos no Brasil. Dois milhões? — perguntava o engravatado diretor da Fundação Gala-Salvador Dalí, Joan Manuel Sevillano, numa longa apresentação recheada de cifras feita a jornalistas brasileiros e diretores do CCBB e do Tomie Ohtake, em Figueras, na última terça-feira.

Dalí, lembra ele, é uma indústria rentável: nos últimos 20 anos, suas exposições pelo mundo movimentaram € 60 milhões, e a fundação que divulga seu acervo faturou € 15 milhões só em 2012. Entre 2001 e 2012, as obras do surrealista foram vistas por 5,5 milhões de pessoas pelo mundo — um aumento de 317% com relação ao público mundial do artista entre 1994 e 2000.

Influência de Picasso

Aqui, Dalí terá um recorte distinto daquele apresentado em sua última grande retrospectiva internacional, em Paris, no Centro Pompidou, em 2012, que arrebanhou 790 mil visitantes. No Brasil, a curadoria se concentra em sua obra surrealista, e não há tanto o tom de retrospectiva apresentado na França, embora Rio e São Paulo devam receber trabalhos feitos desde os anos 1920 até 1982.

As peças rumo ao Brasil pertencem aos três maiores acervos do artista no mundo: o da Fundação Gala-Salvador Dalí — que mantém, além do Teatro Museu Dalí, em Figueras, outros dois museus (o Castelo de Púbol, num diminuto povoado vizinho dali, e a casa que o artista construiu em Cadaqués, às margens do Mediterrâneo) —; o do Salvador Dalí Museum, na Flórida; e o do Museu Reina Sofía, em Madri.

Apesar de serem coleções vastas, elas não detêm as mais famosas pinturas de Dalí, como “A persistência da memória”, de 1931 (aquela célebre imagem dos relógios que parecem derreter). Ainda assim, há importantes trabalhos na exposição brasileira, como “Figuras tumbadas em la arena”, de 1926, ano em que Dalí conhece Picasso e expressa a influência do cubista em suas pinturas.

— Quisemos fazer algo especial para o Brasil, de forma que, na exposição, seja possível ter uma boa ideia do surrealista Dalí — diz a catalã Montse Aguer, curadora da exposição e diretora do Centro de Estudos Dalinianos da fundação em Figueras, de onde sairão 11 pinturas da exposição (outras dez virão de Madri, e nove, da Flórida). — Ele é tão conhecido justamente por incluir, numa pintura de muita qualidade, elementos desconcertantes. A princípio, entende-se tudo, mas, olhando uma tela com calma, o espectador descobre que foi enganado por seu olhar. Dalí foi um visionário, que antecipou questões muito contemporâneas e construiu um universo peculiar.

Nas casas onde viveu, convertidas em museus, o espanhol de fato ergueu um acervo pessoal bizarro. No vilarejo de Púbol, onde reformou um castelo medieval para dar à sua amada, a russa Gala — que abandonou o poeta Paul Elouard e sua filha para ficar com Dalí em 1929 —, um cavalo empalhado abre a visita. Estão lá sobretudo reproduções de telas e móveis estranhos que Dalí projetou, como uma mesa com patas empalhadas de avestruzes.

Acumulador de esquisitices

Aberto ao público em 1996, o Castelo de Púbol era apenas de Gala, e o próprio Dalí, para visitá-la, era obrigado a enviar pedidos por escrito. Lá, duas esculturas de elefantes com pernas finíssimas fazem as vezes de regador de um jardim, que guarda uma piscina decorada com 12 cabeças de Wagner (compositor preferido do artista). Na garagem, um Cadillac e outro carro que Dalí ganhou de presente depois de fazer uma propaganda do automóvel — embora nunca tenha aprendido a dirigir.

Mas seria a luz de Portlligat, uma área de pescadores na minúscula cidade de Cadaqués, que inspiraria suas pinturas desde os anos 1920 até o fim da vida. O sol às margens do Mediterrâneo incide de forma “suave pela manhã e nostálgica ao fim do dia”, como define Jordi Artigas, coordenador do Castelo de Púbol e da Casa Salvador Dalí, em Portlligat. Lá, Dalí pintou, entre outras telas, “El pie de Gala”, obra que estará em exposição no Brasil.

A casa, conhecida por ter ovos de gesso gigantes instalados no telhado, recebe visitas de até oito pessoas por vez (que têm 40 minutos dentro da casa) e é mais uma mostra de como Dalí foi um acumulador de esquisitices. Uma breve lista do acervo de Portlligat: um urso branco empalhado segurando um abajur e com o peito coberto de medalhas, uma coruja (também empalhada), cisnes e bodes, gaiolas para grilos (Dalí os prendia em pequeninas jaulas por gostar de seu canto), esquilos, leões e veados de pelúcia. Sua verve para o marketing pessoal também é notável — no closet do casal, cobrem os armários fotos de Dalí e do Papa João XXIII, de Dalí e Gregory Peck, de Dalí e do Rei da Bélgica, de Dalí e do general Franco, de Dalí e Duchamp, de Dalí e Coco Chanel…

— Ele foi o rei do marketing — diz, sorrindo, a guia da casa.

O Globo

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