23
abr
2016

Em março, estive percorrendo os locais importantes para a reconstrução de vida e obra de Miguel de Cervantes (1547-1616). Um dos pontos altos da viagem foi a visita à exposição “Miguel de Cervantes – De la Vida al Mito (1616-2016)”, na Biblioteca Nacional de España, em cartaz até 29 de maio. O resultado de toda a investigação está em caderno especial que circula hoje na “Folha de S.Paulo”.

Aqui, destaco a conversa com o professor José Manuel Lucía Megías, catedrático de la Universidad Complutense de Madrid e organizador da exposição, realizada na capital da Espanha.

Folha – Qual é a principal dificuldade de armar una exposição sobre um personagem que morreu há 400 anos e cuja documentação deixada é muito reduzida?

Lucía Megías – Na hora de pensar a exposição para comemorar os 400 anos da morte de Cervantes, a primeira grande exposição que se realiza sobre Cervantes no mundo, queria falar do homem que viveu há 400 anos, em numa época fascinante como foi o Século de Ouro, mas também da imagem que ele mesmo projetou de sua biografia em seus escritos, a criação de um personagem, e do mito que se foi criando ao redor de sua figura. O projeto era tão ambicioso que um dos grandes problemas foi ter de limitar os temas, tendo em conta que deveríamos contar com apenas 200 peças de exposição.
Deste modo, julguei que o mais oportuno foi contar com as peças mais relevantes, as que nunca foram vistas expostas, mas que todo o mundo conhece: conseguimos juntar o maior número de autógrafos de Cervantes conhecidos (apenas se conservam 11, e estamos expondo 9), o maior conjunto de retratos, todos eles falsos [não foram realizados retratos de Cervantes em vida, todos os que hoje se conhecem são aproximações a descrições de terceiros ou inspiradas por relatos dele e de outros que o conheceram], e exemplares das primeiras edições de suas obras, assim como documentos originais de sua vida. Como ocorre em tantas exposições, o mais doloroso são as peças que, ao final, não puderam ser expostas por falta de espaço… Mas estou contente com a seleção: está tudo o que tem de estar, peças únicas, algumas exibidas pela primeira vez.

Creio que saldamos a dívida que tínhamos com Cervantes, com sua pessoa, seu personagem e seu mito.

Folha – Entre os documentos da exposição, quais destacaria como os mais recentes e que podem jogar um pouco mais de luz a tantas zonas misteriosas, ainda, de sua biografia?

Lucía Megías – Lamentavelmente não se descobriram novos documentos que joguem luz sobre a vida de Cervantes. Os achados mais recentes têm a ver com seu trabalho como arrecadador de impostos, do qual temos muita documentação. O que, sim, me parece importante é que, na exposição, se expõem documentos conhecidos, mas que foram vistos poucas vezes, como a certidão de nascimento, emitida em Alcalá de Henares, onde nasceu, ou o livro de óbitos de Madri, ou uma de suas petições ao Conselho das Índias para ir à América, em 1590, ou os contratos para escrever umas comédias na volta de seu cativeiro em Argel. E os autógrafos, obviamente.

É emocionante estar diante desses documentos que foram escritos por seu próprio punho e letra, saber que esse papel e a pluma com a qual escreveu estiveram em contato real com Cervantes.

Folha – Me pareceu muito intrigante a seção relacionada à sua imagen. Como ensina a mostra, a única referência deixada por ele sobre sua própria imagem é uma descrição, um tanto irônica, que ele faz de si mesmo no prólogo das “Novelas Exemplares”. Há uma historiografia do modo como ele foi retratado ao longo da história? Qual a principal diferença do modo como era desenhado, e quiçá idealizado, nos seus primeiros tempos, e nos mais recentes?

Lucía Megías – Sabemos pouco ou quase nada de como era Cervantes fisicamente. Diante do que sucede com outros escritores da época (Lope de Vega, Quevedo, Góngora…), não se realizou (ou não conservamos) retratos seus da época, apenas uma descrição sua no prólogo de suas “Novelas Exemplares”, peça angular de uma determinada visão que queria dar de si mesmo.

A partir daí, que desde 1738 se buscaram retratos seus e, ao não serem encontrados, se decidiu por colocar traços e linhas a essa descrição que vinha do texto, dando lugar a uma iconografía quixotesca falsa que começa em 1738, na edição de Londres do Quixote, e que culmina no falso retrato de Cervantes atribuído a Juan de Jáuregui, e que preside o Salão de Atos da Real Academia Espanhola. É uma das peças centrais da exposição, restaurado para a ocasião, que pela primeira vez se expõe à altura dos olhos. Nunca antes se havia realizado uma reunião semelhante de retratos conservados de Cervantes.

Folha – Qual foi a principal preocupação dos organizadores da exposição com relação à introdução da obra de Cervantes aos mais jovens?

Lucía Megías – A exposição está organizada em vários níveis de leitura, pensando desde um público erudito e conhecedor do tema a um público mais jovem. A Biblioteca Nacional de España organizou um programa de visitas guiadas para os mais jovens, assim como de oficinas para aproximar a vida e a obra de Cervantes durante o tempo da exposição com a ideia de que Cervantes e sua obra seja o mais próximo possível de todos eles.

Ler, fomentar a leitura como porta à informação e ao conhecimento deveria ser um dos eixos primordiais das celebrações cervantinas. Estamos convocados, 400 años depois da morte de Cervantes, porque foi um escritor, porque foi capaz de criar uma obra que o fez imortal. A leitura, de certo modo, é o que nos permite um diálogo direto com Cervantes e com a literatura. E é algo que devemos apoiar.

Folha – Por que acha que nutriu, por alguns anos, o desejo de vir às Américas? O que as evidências deixadas permitem concluir sobre as razões pelas quais teve esse anseio?

Lucía Megías – Depois que voltou do cativeiro, em Argel, em 1580, depois depois de passar 5 anos preso, Cervantes aspira a um dos postos vagos na administração da monarquía espanhola. E dentre eles, aspira a alguns que estão na América, onde há maiores oportunidades de prosperar do que na Espanha.

Desde 1582, temos evidências de suas petições por essas vagas. Sabemos que tentou em várias ocasiões, e a última foi em 1590, quando enviou uma petição ao Conselho das Indias com todos os dados e solicitando um dos 4 postos vacantes que conhecia. A resposta, porém, foi curta e clara: “Busque por aqui aonde prefira”. Cervantes então se faz comissário de arrecadação de impostos na Andaluzia.

O sonho americano acaba nesse momento.

Folha

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